1. Tecnologia: uma reflexão sobre suas interferências
Não somos culpados pelo mundo que encontramos ao nascer. Mas precisamos, na medida de nossas possibilidades, fazer alguma coisa pelo mundo que está sendo construído (ou destruído). E que será herdado aos que hão de vir. (Gilberto Cotrim) |
A tecnologia é hoje parte inerente da vida do ser humano de modo que não conseguimos nos ver separados dela. Muitas vezes concebemos a nós mesmos como complexas máquinas físico-químicas com um cérebro, que pode ser comparado a um potente e complicado computador. Porém devemos estar alerta quanto a reduzirmo-nos a um simples objeto da técnica, ou vincular a realização de nossos sonhos e a resposta a nossas angústias aos avanços tecnológicos.
Na nossa ânsia para alcançar o progresso tecnológico, não levamos em conta suas implicações sociais relacionadas aos hábitos, percepções, conceitos, limites morais, políticos e individuais. Passamos por cima de algumas questões de suma importância tais como a fome mundial, a degradação do meio ambiente, as armas nucleares que ameaçam destruir toda a vida do planeta e, mais forte que nunca, a manipulação genética.
Estes são alguns dos aspectos que nos levam a perceber a premência de refletirmos sobre a utilização da ciência e da tecnologia, para podermos realizar escolhas tendo como referências os valores ‘humanos’. Enquanto pertencentes a um país dependente, que faz uso de tecnologias transferidas sem uma adequação à realidade nacional, intensifica-se, em nós, essa necessidade.
Assim sendo, desencadeamos reflexões sobre as interferências da tecnologia no desenvolvimento da sociedade brasileira buscando possibilidades de socialização de seus resultados, sejam eles positivos ou negativos. Com a visão de que o desenvolvimento tecnológico leva-nos diretamente ao desenvolvimento social fomos progressivamente vinculando o desenvolvimento humano aos avanços tecnológicos deixando de considerar os desvios que ocorrem. Cegamo-nos às diversas implicações negativas desse processo de desenvolvimento passando a perceber apenas o que de positivo prometem trazer os avanços tecnológicos.
Um interessante problema de nossos tempos é que estivemos adormecidos voluntariamente através do processo de reconstrução das condições da existência humana, não percebendo que o desenvolvimento tecnológico, não favorece a satisfação das expectativas no tocante às necessidades humanas, ao contrário, o padrão consiste em ajustar as necessidades humanas ao que a ciência e a tecnologia produzem.
No final da década de 60 e início de 70 as idéias e pressuposições, até então irrestritamente favoráveis aos benefícios sociais decorrentes do desenvolvimento tecnológico, começaram a ser questionados nos países desenvolvidos como reação aos reflexos negativos da tecnologia sobre a natureza. (Acosta-Hoyos; Guerrero, 1985). Hoje estes questionamentos, cremos, em função da avalanche tecnológica de nossos dias, estão se tornando mais intensos.
No Brasil, estamos começando a nos questionar acerca disso tudo, e a refletir sobre algumas questões mais emergentes, que vem sendo discutidas em nível mundial.
Como estamos vivendo agora? Como pretendemos viver? O imenso poder científico e técnico, produzirá um mundo genuinamente superior ao que tínhamos antes; ou permaneceremos estagnados diante de uma acumulação de renovações descuidadas e desordenadas que destróem mais que melhoram? Por que a ciência e a tecnologia não têm tido sucesso em solucionar o problema mais humano de todos: a qualidade de vida? Como nosso país está tratando os impactos oriundos da tecnologia na sociedade?
Ainda que reflexões como estas aflorem em alguns segmentos da sociedade grande parte da população, que vive nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, permanece enraizada no determinismo tecnológico, vaga num profundo sonambulismo, e considera a tecnologia neutra destituída de valores como uma espécie de crença sem questionamentos. As reflexões e análises, que raramente ocorrem, em geral, baseiam-se na inadequação da tecnologia, ao invés de analisar as questões sociais e políticas que envolvem tanto a escolha quanto a incorporação das mesmas.
Não se trata de ver a tecnologia apenas como negativa e de prescindir da mesma, mas sim de discutir a validade de tomá-la como algo absoluto, de compreender que não existe neutralidade nas inovações tecnológicas, que elas podem ser utilizadas para o bem e para o mal, a favor ou contra o homem.
Essas afirmações são corroboradas por Winner (1987, p. 42), quando diz que toda descoberta é preparada de antemão para favorecer certos interesses sociais e algumas pessoas inevitavelmente recebem mais que outras.
Cientes disso, os cientistas precisam preocupar-se com a aplicação dada a suas descobertas e teorias; devem manter-se alerta para a utilização que será dada a elas, pois é evidente que as tecnologias podem ser utilizadas de maneira a aumentar o poder, a autoridade, o privilégio de uns sobre os outros. Nesta direção Sanmartín (1990, p. 62) afirma que mais além dos projetos, teoricamente incorporados por uma tecnologia, que a fazem apropriada para uma ou outra forma de vida, estão as redes reais de interesses sociais nas quais a tecnologia em questão já nasce ligada.
Zarth et al. (1998, p. 35-36), destaca que a “tecnologia é o instrumento mais adequado para se impor uma dominação e controle sobre a natureza e sobre a sociedade” e que o progresso tecnológico, de certo modo, se constitui em estratégia do desenvolvimento capitalista, não necessariamente vinculada às necessidades básicas da população; tornando-se “um fator ideológico pelo fato de irradiar a idéia de que ele representa o caminho do bem estar social para todos os segmentos sociais”.
Entendemos que o foco do problema não está na inexorabilidade do progresso tecnológico, mas sim na orientação e determinação de prioridades que os governos dos mais diferentes países do mundo têm formulado para a tecnologia. Esta não pode ser direcionada para servir de base para promoção dos interesses de poucos. A sua ênfase deve convergir para a promoção humana, expressa em termos da qualidade de vida.
Diante do exposto, cabe a reflexão diretora deste nosso estudo: que influências da tecnologia detectamos em nossas vidas? Algumas respostas e afirmações já vem sendo oferecidas, como resposta a esta pergunta, por diversos estudiosos neste campo como podemos ver a seguir:
- A tecnologia levou a um aumento da expectativa de vida, a um mundo interligado/globa-lizado, e ao acesso a informação de forma veloz.
- Culturalmente, nos foi passada a imagem de que a tecnologia está diretamente associada a civilização e ao progresso, induzindo-nos à adoção de novos padrões sociais.
- A tecnologia é usada para sobrepujar a natureza, submetendo-a à constantes agressões e utilizações indevidas. Tal constatação é reforçada por Winner (1987, p. 103), quando diz que “recursos não renováveis requeridos por gerações futuras são extraídos e rapidamente consumidos confiando em que, de alguma maneira, ‘o mercado’ produzirá um fornecimento inesgotável”.
- A automatização industrial alterou o perfil profissional. Isto exigiu dos trabalhadores a busca por uma atualização constante, gerou a diminuição do emprego estrutural e contribui para a migração ao mercado informal.
- O não acesso às tecnologias, por parte de toda a população acentua a exclusão social, aumentando a desigualdade social. Ou seja, modernidade para poucos e falta de educação, saneamento, habitação, saúde e lazer para muitos.
- A influência dos meios de comunicação na conformação pela introdução de novas tecnologias e na aceitação natural, conformismo levando os seres a pensar que não há outras possibilidades que não se sentar a observar o desenrolar deste processo inevitável.
Tudo isso reforça o que Winner (1987, p. 25), traz nesta citação:
“os hábitos, as próprias percepções, os conceitos, as idéias de espaço e tempo, as relações sociais e os limites morais e políticos, individuais, foram poderosamente reestruturados no decorrer do desenvolvimento tecnológico moderno. (...) Se produziram grandes transformações na estrutura de nosso mundo comum sem levar em conta o que implicavam estas alterações”.
Estes aspectos discutidos acima, mostrando a interferência e a magnificência da tecnologia frente ao desenvolvimento humano, ficam evidenciados através do lema que abria o roteiro da Exposição Universal de Chicago em 1933 (Sanmartín, 1990, p.28): “A ciência descobre, a industria aplica, o homem se ajusta”, situação que ainda hoje se constata na grande maioria dos casos. O demagógico desse ajustar-se não está no controle pretendido por determinadas sociedades dominantes quando da venda de produtos sob a promessa de que vão conceder um paraíso tecnológico, mas essencialmente na crença da população nesta promessa. Felizmente emergem aqui e acolá reações a essa crença, a esse ajustar-se. Winner (1987) destaca que o crescimento de certas tecnologias tem levado a um reconhecimento de seus limites e que muitas pessoas estão dispostas a considerar a possibilidade de limitá-las, dado que sua aplicação/utilização ameaça a saúde e a segurança pública; ameaça esgotar alguma fonte vital; degrada a qualidade do meio (ar, terra e água); ameaça as espécies naturais e os territórios virgens que devem ser preservados; e causa tensões sociais e esforço exagerado.
No reconhecimento dos limites do progresso tecnológico o que se sobressai é, na verdade, a necessidade de uma ética da tecnologia. Segundo Mitcham (1996) a ética da tecnologia se fundamenta sobre um amplo questionamento moral da tecnologia científica, ela se refere a intenção geral de adaptar a tecnologia como um todo, não somente frente as questões ambientais, nucleares, de armamentos, da biotecnologia, mas incluir questões mais amplas relacionadas a sociedade.
Hoje, para mudar a sociedade, afirma Sanmartín (1990, p. 63) não basta, pois, substituir umas tecnologias por outras (ainda que isso possa ser algo valioso por si). É necessário mudar a política tecnológica. O que teria que se fazer é fixar socialmente metas e favorecer, logo, as tecnologias que se estime socialmente mais oportunas para satisfazê-las.
Isso nos remete à reflexão feita por Pacey (1990) no que tange à tecnologia como algo que proporciona ferramentas independentes dos sistemas de valores locais e que podem utilizar-se imparcialmente em apoio de estilos de vida substancialmente diferentes. Entendemos que esta visão é que proporciona a transferência de tecnologias entre sociedades sem considerar suas especificidades, sem refletir que de algum modo a tecnologia condiciona a sociedade.
Nessa questão cabe bem a situação brasileira pois, o Brasil ao colocar em prática um projeto de desenvolvimento baseado em tecnologia importada, incorporou os modos de produção e também as formas de conhecimento do produtor. Ou seja, transformou nossa sociedade moldando-a à imagem da sociedade que produziu a tecnologia.
Outra questão relativa a interferência da tecnologia na sociedade brasileira está ligada ao poder e controle que dela pode emergir. Quando não há democracia no acesso ao desenvolvimento tecnológico, caminhamos para a diferenciação social, para a exclusão social. Aspectos estes, que dentro da dinâmica de uma sociedade contemporânea são instrumentos de poder e de controle. No Brasil, é o Estado que promove o desenvolvimento da base técnica produtiva, num processo não de igualdade de acesso aos fatores tecnológicos, mas beneficiando os sujeitos sociais com melhores condições técnicas e de capital. Cerca de 95% da população brasileira não tem acesso às tecnologias, e quando tem sofre influências negativas pela não adaptação ao seu contexto.
Os problemas relacionados à tecnologia em determinado contexto social geralmente são resolvidos sem levar em consideração a opinião pública. Por outro lado, a própria população, por falta de informações/conhecimento, se excluí do processo de reflexão acerca das interferências dos avanços tecnológicos na sociedade.
Emerge, desse contexto, a necessidade de uma reflexão moral que investigue e desenvolva temas que incluam: a minimização da desigualdade social, o acesso a informação, o futuro da sociedade, a socialização da tecnologia e do saber científico-tecnológico, visando uma participação de todos nas decisões relativas à tecnologia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário